A hora do lobo

A hora do lobo
Maria José Margarido
Rui Coutinho (foto)
Em DN Boa Vida, hoje
O lobo deixou de ter medo do homem nesta terra fria transmontana: já não foge nem sente necessidade de andar em alcateia. É criado em jaulas e, só mais tarde, solto nas serranias de Portugal e Espanha. "Espalham-no para aí para que não se extinga.
O bitcho bravo foi domesticado", garante o pastor Maximino, residente dos montes acima de qualquer outra morada. O mito da perigosidade do lobo parece ter sido substituído por outro, e já ninguém enumera ataques: o nervosismo extravasa para a proximidade latente, a presença silenciosa. "Quando vamos de jornada ele sai ao caminho, foge, desaparece, ultrapassa, torna a mostrar-se. Acompanha- -nos."
A lenda do lobo há-de acompanhar estes homens e mulheres curtidos pela solidão e pela invernia. Maximino, agora que chegou perto dos 70 anos, sempre na zona de Quintanilha, parece arrependido de atitudes menos ponderadas no passado. Do antagonismo entre espécies. Sublinha vezes sem conta que entende o bitcho depois de tantos anos de convivência, coça a cabeça enquanto oferece um biberão improvisado em garrafas de cerveja a uns poucos cabritos que ali tem, só para o sustento. "Ultimamente vemo-los todos os dias, chegam a rondar a casa à noite, não têm medo." Recusa-se a falar de ataques, "o rasto é sempre para ali, para Espanha. Tudo depende da fome", sendo certo que estes animais conseguem percorrer, num só dia, 20 a 40 quilómetros à procura de presa. Os pastores já não passam a noite nos montes e isso reduz substancialmente o perigo, a possibilidade de "chegarem matreiros, enroscarem-se no chão, rasos, entre as ovelhas, e arrastarem uma", modus operandi do lobo tal como é insistentemente descrito por Maximino.
Tudo depende do ecossistema a que o homem não deu descanso. Na falta de presas selvagens, o lobo ataca os rebanhos. A imagem demoníaca levou séculos a construir, tal como as armadilhas e batidas. As crias eram roubadas e aniquiladas logo depois de serem paridas - alguns ficavam com um lobito por piada, mas zangavam-se quando o instinto mostrava os seus dentes a alguma galinha menos afortunada, e o destino acabava por ser o mesmo. Se conseguiam matar um exemplar adulto a tiros de zagalote, iam de porta em porta receber o dízimo pelo serviço prestado à comunidade, ostentando o cadáver do bicho. Foi assim em Montezinho como em toda a Europa, e hoje restam 300 lobos-ibéricos em Portugal. Ainda não há muito tempo, nos anos 60, o Canis lupus existia em todo o território, incluindo o Alentejo e Vale do Tejo, pertinho de Lisboa.
A tiros de zagalote
João Manuel Fernandes nunca foi pastor mas já foi chamado a disparar o seu zagalote, há décadas que conta pelos dedos das mão como quatro. Nem sempre contra os lobos, mas sempre por causa deles. Depois de ter estado em Moçambique, durante a Guerra do Ultramar, calhou-lhe na sorte ser seleccionado para terminar com o sofrimento de uma burra atacada por uma alcateia. Ainda hoje se lembra, ainda hoje lhe custa recordar. "Como era caçador, foi de mim que se lembraram para dar fim ao sofrimento da bicha. A burra espantou-se quando sentiu o cheiro do lobo, caiu num fosso e ficou entalada, com a cabeça escondida e o quadril de fora." O sexagenário de Quintanilha, que depois da guerra trabalhou em fronteiras estabelecidas há mais tempo, como funcionário da Alfândega, faz questão de mostrar o local. "Não puderam matá-la filando-a pelo pescoço, como é hábito. Quando lá chegámos já não tinha quadris e os intestinos estavam à mostra". O tiro de misericórdia foi seu, numa época em que corria ligeira a lenda de um guarda civil carabineiro comido até às botas, que apenas conseguiram manter lá dentro os pés.
O caçador tem agora 65 anos e conta histórias só pelo prazer de contá-las. Tão próxima era a convivência e tão ferozes os ataques que todas as espécies, do homem à vaca, passando pelos próprios lobos, desenvolveram mecanismos de sobrevivência. Uma alcateia de três mata uma vaca se conseguir morder-lhe as patas e a cauda para a fazer cair e depois apontar os dentes ao pescoço. "Por isso é que as manadas de bovinos se colocam em círculo perante os lobos, normalmente para proteger uma cria que fica no meio. Eles não são capazes de investir se as vacas estiverem de frente."
Além da reintrodução de certas espécies no Parque de Montezinho, como o veado e o javali, e da propagação natural de outras, como o coelho e pequenos roedores, há uma garantia que protege agora os animais domésticos destas populações: o Estado paga os prejuízos causados pelo lobo, para tentar minimizar o conflito com os pastores. Um campo aberto também a algumas tentativas de fraude. Para receber o dinheiro é obrigatório rodear o rebanho de um cão para cada 50 cabeças - de preferência o cão de gado transmontano, espécie autóctone de grande porte, recentemente reconhecida. A convivência entre espécies parece, no entanto, mais pacífica. Há um certo arrependimento e pudor. Do homem, de homens como o caçador João Manuel Fernandes, enquanto relembra o dia em que "apanhei aquele lobito novo, nascido em Maio, acertei-lhe no coração. Ganiu como um cachorro".
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